domingo, 24 de abril de 2011

Viradas em Tiradentes






Feriado da Páscoa. Lá fui eu e uma amiga querida passar o sábado de Aleluia na histórica cidade de Tiradentes, que fica perto das nossas cidades de residência. Para mim a viagem surgiu como uma oportunidade de cumprir com uma obrigação no mínimo anual: ir nesta cidadezinha que me faz falta existencial, pela beleza, e também me faz falta gastronômica, já que é um antro de restaurantes bons.
O dia era de sol radiante o que fez com que a cidade nos impressionasse o suficiente para percorrermos o centro histórico e depois pousássemos nossos cansaços num banquinho de pedra, debaixo de uma árvore e aguardássemos a chegada da nossa ilustre convidada, a fome, que, diga-se, veio rapidinha.
Onde comer? Dúvida cruel!!! Nem tão dúvida, nem tão cruel. Com a imensa variedade de restaurantes a solução é fácil de ser resolvida, e como minha amiga não conhecia o Viradas do Largo, da chef Beth Beltrão, local onde bato o ponto quando vou a Tiradentes, foi para lá que fomos.
Chegamos cedo, mais ou menos ao meio-dia, no intuito de descansar e ficar observando a tranquilidade do lugar, mas, - surpresa! - já estava quase cheio, porém ainda conseguimos lugar na varanda virada para vistosos pés de couve e taiobas vicejantes. Fomos logo atendidos por um garçon que estava visivelmente afetado com o sufoco de ter que atender tanta gente num restaurante onde, normalmente, vão muitas pessoas mas espaçadamente durante o passar do dia, afinal o Viradas do Largo figura como um dos melhores do Brasil no Guia Quatro Rodas a anos. Mas o jovenzinho se rendeu aos muxoxos meus e da minha companheira e nos atendeu numa precisão perfeita: minha caipirinha de lima chegou em tempo record à mesa depois dele ter me ameaçado com uma demora infinita. Ponto pra Beth!
Conversa boa - é sempre assim com gente inteligente -, dia tépido, sombra fresca, assim foi correndo nosso repasto onde as bebidas foram sorvidas acompanhadas de uma mandioca frita daquelas: crosta crocante por fora, creme úmido por dentro. Antes que a caipirinha - perfeita, gelada e cometida com pinga estrelada - fosse o prato único, chegou a hora de decidirmos o que comer.
O cardápio da Beth é despido de muitos arroubos criativos, já que é proposta dela proporcionar autênticos pratos da culinária tradicional mineira. Um ou outro prato demonstra uma intervenção da chef, porém boa parte da oferta se restringe aos tutús, tropeiros, mexidos e um prato chamado Minerin Pomposo, feito com bacalhau, que é o que dá direito ao prato da Boa Lembrança, confraria da qual o Viradas faz parte.
Decidimos por um tropeiro e não fiz comentários com a minha amiga para não quebrar a surpresa que aconteceria com a degustação. Falo isto porque é fácil deduzir o que pode passar na mente de alguém, nascido e criado em Minas, quando se pede um prato tradicional e o que pode surgir daí. A resposta veio quando pousou na nossa mesa uma panela de barro com belos nacos de lombo e costelinhas de porco, linguiças e torresminhos, todos delicadamente deitados numa caminha de couve picada fininha e do feijão tropeiro, além de um arroz branquinho de acompanhamento. Era a hora da verdade!
Na primeira garfada minha colega de viagem virou os olhinhos, sinal de que havia percebido o porque da fama da Beth no Brasil e no mundo. A sensação é que esta é a primeira vez que se come tal prato. Depois desta experiência todos os outros tropeiros comidos na vida ficam anulados: a delicadeza é única. Mesmo composto pelos ingredientes que figuram nas listas negras de médicos e nutricionistas neuróticos, no caso específico tudo parece diet, devido ao cuidado no fazer, na qualidade do material, na dosagem perfeita dos tempêros e na sensibilidade da chef em perpetrar a receita de modo tão delicado.
Nos deliciamos do início ao fim com a iguaria e minha amiga ainda se permitiu comer uma sobremesa genial: sorvete de queijo com calda quente de goiabada. Nossa, estava divino.
Terminado o repasto só nos restou dar uma volta para despedirmos de Tiradentes e do belo dia e pegamos uma estrada vazia, tranquila onde predominou um assunto único: a experiência promovida pelo maravilhoso almoço. Ficou na memória a figura simpática da Beth Beltrão e seu avental feito com uma bandeira do Brasil. Perfeito!

terça-feira, 19 de abril de 2011

Prato vazio


Desde março que batalho uma viagem ao Peru. Queria proveitar a estação da seca e ir lá ver as maravilhas de Cuzco, Machu Pichu e os desenhos de Nazca. Confiante na minha empreitada me vi frustrado nesta semana pela notícia de que não há vagas para meu destino sulamericano até setembro. O motivo? Os novos brasileiros com grana no bolso que querem fazer uma viagem internacional. Nossa, imagino como está para ir para Buenos Aires...
Bem, fiquei meio sem rumo com esta quebra nos meus planos de férias mas, antes de lamentar o adiamento para 2012 desta empreitada cultural, lamento o cancelamento que tive de fazer da minha reserva no restaurante Astrid y Gastón, hit culinário na cidade de Lima. Foi doído...
O referido restaurante é considerado um dos melhores do mundo e o chef Gastón Acurio é uma celebridade lá e no resto do planeta, daí eu ter planejado comer na casa num dos dia da viagem. Conseguir uma reserva tem que ser com certa antecedência, não necessariamente com 5 meses como eu fiz, mas a casa anda lotada desde que passou à frente de restaurantes como o Plaza Athenée, do estreladíssimo Alain Ducasse, na lista da revista Restaurant.
Com o uso de ingredientes ultra frescos, Gastón faz uma culinária onde os tradicionais pratos da cultura peruana, como o ceviche, são trabalhados de forma inovadora, gerando fusões com outras cozinhas e agregando ingredientes novos e resgatando outros que foram retirados por causa da adequação ao gosto moderno, contaminado por uma ideia de platitude comercial. Com isto o sujeito já abriu filiais por muitas cidades do mundo mas, infelizmente, ainda não tem nenhuma no Brasil.
Vai ficar para a próxima.

É nóis na fita





Mesmo com um apelo popular no título deste post, na verdade ele vai falar de um elitismo único. Ontem, em Londres, foi anunciado o rol dos 50 melhores restaurantes do mundo, premiação do The S. Pellegrinno World's 50 Best Restaurants, elaborado pela publicação britânica Restaurant. Nosso conterrâneo Alex Atala, chef do D.O.M., em São Paulo, foi classificado como o 7º melhor do mundo, o que não é pouco. Atala vinha calcando degrau por degrau esta lista exclusiva fazendo uma culinária de excelência usando ingredientes brasileiros em versão criativa. É um mérito estar entre os dez melhores numa lista encabeçada pelo darling da hora, o restaurante Noma, da Dinamarca, que é conduzido por um talento jovem, o chef René Redzepi.
Mas não paramos por aí, em 59º lugar está o chef Salvatore Loi, do refinado Fasano, e em 74º lugar está a dupla Helena Rizzo e Daniel Redondo, chefs do restaurante Mani, ambos também na capital paulista. É para festejar muito esta ascenção da culinária brasileira no reconhecimento mundial o que só confirma o que vem sendo dito por muitos experts da gastronomia: o Brasil será a bola da vez depois da fase "cozinha molecular" que Ferrán Adriá cravou por anos e agora se retira do cenário. É esperar para ver.

Eisbein




O eisbein, conhecido popularmente como joelho de porco, é mesmo um joelho de porco. Não chega a ser um prato repulsivo para o brasileiro, especialmente por termos na nossa culinária coisas até mais estranhas usando partes menos nobres do coitado do porco, que é o caso da feijoada. Como moro em região onde a cultura alemã se instalou a mais de um século, ver nos açougues locais esta parte da anatomia suína sendo exposta e vendida com naturalidade é fato corriqueiro.
O eisbein, nome chic oriundo da cultura germânica, é muito saboroso pois contém carnes que ficam em contato com as cartilagens e o osso do joelho, o que faz com que, ao ser cozida, sejam liberados sucos que a transformam num macio e perfumado prato. Eu gosto muito de fazer o dito cozido em um caldo temperado com legumes e especiarias, mas desta vez optei por fazer a versão defumada para dar um contraste com o acompanhamento delicado que resolví fazer.
Bem, como sempre eu vou à cozinha num domingo, já que minha semana é trabalhando e comendo o trivial que, às vezes, nem me excita para vir até este blog fazer postagens, o que justifica o espaçamento entre uma e outra atualização.
Planejei fazer o eisbein com dois dias de antecedência para que pudesse ser-lhe dedicado durante a manhã dominical. Nada é mais chato do que ter que interromper a pilotagem de um fogão para sair à rua à procura de algo que faltou na receita, daí o ritual que começa com o meu isolamento pacífico em casa, com a escolha de uma música tranquilizadora e com o preparo prévio dos ingredintes.
O joelhão ficou descongelando (só conheço o defumado na versão iceberg) desde a noite de sábado, e, antes de levá-lo ao preparo, fui no quintal à caça de viçosas taiobas que cresciam felizes em torno da piscina. Sim, elas serão as companhias vegetais desta peça carnuda já que, além de fazer contrastes nas papilas gustativas, tirarão também a culpa possível que ainda me assombra por causa dos 9 anos da minha vida que me dediquei à dieta vegetariana.
Com cuidado tirei a carne da embalagem, não sem antes ler cuidadosamente as sugestões de praparo temeroso de que a ingestão do vinho durante a atividade culinária me causasse uma possível amnésia alcoolica (rs...). O preparo era simples e assim procedí: untei uma travessa com manteiga (uma sutil camada fina) e nela depositei a peça besuntada com uma nada sutil camada do mesmo derivado do leite. Com o forno pré-aquecido em fogo médio, coloquei a travessa e lá a deixei quietinha. Não demorou muito o som do crepitar da pele que envolve as carnes suinas fez parceria com o cool jazz da trilha que já saía nas caixas de som. Depois de 20 minutos assando, abrí o forno e dei uma viradinha para assar também do outro lado por outros 20 minutos, abrí novamente e virei de novo a peça para deitá-la do lado da pele e aumentei a temperatura para alta e deixei outros 20 minutos.
Enquanto a carne cumpria sua missão nesta vida, eu preparei o acompanhamento. Para dar suporte à minha invenção, - improvisada com materiais que estavam no armário da cozinha clamando por serem comidos antes dos prazos de validade vencerem - preparei meia cebola picada em cubinhos disformes, meia xícara de arroz tailandês (mas pode ser feito com outro qualquer) e as tenras folhas da taioba, rasgadas com os dedos, que descansaram lavadinhas no escorredor. Providenciei anteriormente um caldo de frango que já tinha sido retirado do ostracismo do freezer e estava quentinho numa chaleira na trempe do fogão.
Numa panela coloquei um delicado fio de azeite onde deitei as cebolas choronas que fizeram um bom dueto crepitante com o eisbein no forno. Logo que elas ficaram transparentes coloquei os grãos do arroz tailandês, não sem antes visualizar aqueles lindos terraços onde os orientais plantam este alimento ancestral, e, após leve mexidinha, coloquei o caldo para ativar o cozimento. Assim que deu uma reduzida no líquido, dei uma provadinha na textura dos grãos para ver se estavam cozidos (tem que ser al dente) e fui lentamente dosando e agregando as conchas do caldo até que ví que bastariam. Neste ponto adicionei as folhas de taioba para que se misturassem àquilo que me conscientizei ser um risoto nada tradicional. Corrigido o sal, estava tudo OK para ir à mesa.
É inacreditável a visão do eisbein saindo do forno: o perfume exalado enche nosso olfato de promessas felizes e o visual é um nocaute na fome: a crosta pururuca, sequinha, é uma ofensa às dietas (todas elas...). Tive o cuidado de retirar o joelho da travessa e pousá-lo num papel absorvente para retirar um pouco da manteiga derretida que se depositou no fundo do cozimento. Após isto ficou perfeito.
Finas fatias da carne (com pedacinhos crocantes da pele) e algumas colheres do risoto de taioba desenharam no prato um quadro inigualável, uma verdadeira proposta estética (a fome altera nossa percepções, com certeza), e quando o fio verdinho do azeite grego perpassou a cena, aí só mesmo a felicidade suprema de comê-lo a ser vivida.
Um Penfolds Shiraz e Cabernet acompanhou o repasto soltando suas notas sublimes que faziam cada garfada ser renovada e tudo parecer novo a cada saboreada.
Gente, a vida é linda.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Um prato só




É muito comum a gente ter na nossa agenda, ou no nosso mapa mental particular, um lugar onde sabemos ter uma comida muito boa, principalmente quando se trata de comida do dia-a-dia, aquela que vai matar nossa fome mas permite também outras alegrias. Alguns destes lugares são estabelecimentos que ficam conhecidos através de uma propaganda boca-a-boca que ressaltam suas qualidades e, assunto deste post, por fazerem um prato só, certeza de um porto seguro, ou, no caso, de uma mesa segura.
Estas casas de restauração chegam a agregar ao seu nome comercial o nome próprio de alguém, seja o proprietário ou alguém amantíssimo dele (filhos, por exemplo), e assim ficam conhecidas como "a feijoada do fulano", "a traíra do sicrano" ou o "feijão tropeiro do beltrano".
Com tamanha relação com o público, muitas destas casas dispensam o cardápio e o atendimento chega a ser minimalista: "Vai querer o feijão?" Claro! Estamos alí para comer "o" feijão. E ele vem rapidinho à mesa pronto a justificar tamanha fama. Na minha cidade natal existe uma traíra sem espinha que arrasta multidões que não se importam de ficar na fila passivamente esperando a hora de degustar "a" traíra. E as expressões de felicidade dominam o ambiente de mesas simples, público eclético e atendimento quase personalizado. Esta cultura do esquema "um prato só" nasceu pela consagração das pessoas, muito antes de serem estratégias de marketing. Normalmente o acerto prevalece e - ah, não podemos esquecer isto - é barato e farto.

A roupa e o homem


Estou orientando na universidade dois alunos que, num ato de coragem extrema, resolveram fazer sua monografia final de conclusão do curso de arte em gastronomia. Se falo e exalto suas coragens é porque sou um estudioso das artes da cozinha e comsigo ver os desdobramentos e interfaces da mesma com o universo da arte contemporânea, coisa que algumas pessoas do meio acadêmico ainda não enxerga. Ancoro-me no grande link entre a cozinha e o conceito artístico que foi definitivamente feito por Ferrán Adriá, mítico chef espanhol, que, ao ser convidado para ser um dos artistas a compor o time da Documenta, refinada mostra de arte contemporânea que acontece em Kassel, na Alemanha, demarcou o território das artes da comida dentro do mundo das reflexões artísticas.
O encontro com estes dois alunos - Anna e Lucas - me renova como professor, pesquisador e como pessoa. Nossa conversas, por mais que estabeleçam mais perguntas do que respostas, gera um estado de alegria interna em nós que vale todo e qualquer esforço na direção da realização pessoal. Eu os vejo com os olhos já fixos no horizonte profissional na área da gastronomia mostrando a certeza disto na vida deles e o encantamento pela arte da comida é fato real. Percebo isto no olhar fixo de Anna que ouve atentamente tudo que falo com ela, e a mim só resta viabilizar o assunto dentro do formato acadêmico e estabelecer o fluxo do rio das ideias de ambos no sentido de desaguar num oceano maior, que é o exercício transformador do alimento em experiência estética.
No nosso último encontro, um deles, o Lucas, abriu a molchila que carregava e dela retirou sua roupa de chef, que usa nas aulas práticas que cursa em outra instituição. Numa performance muito natural, desdobrou o avental, a jaqueta e a toque blanche e os vestiu na simplicidade de que aquilo já faz parte da sua rotina, mas ao vê-lo vestido daquela forma e - principalmente - ver seu olhar iluminado pela alegria de ter se encontrado nesta altura da vida, onde a maioria dos jovens navega num mar de dúvidas, me fez sentir uma emoção única. Aquele uniforme tomou outra dimensão vestido por aquele sujeito e o "fez". Tal como uma armadura esta roupa preservava dentro dela uma pessoa ciente de sua contribuição para o mundo.
Tenho certeza que ambos farão um trabalho exemplar para todos que virão após eles.

Na mesa do bar




Tive um encontro afetivo/profissional nesta semana com colegas acadêmicos para discutir um livro que vamos publicar (a parte profissional) e para sentarmos na mesa de um bar para colocarmos a vida em dia (a parte afetiva). Fomos a um bar tradicional da cidade, o Bar do Bigode, que é um ícone da balada de muita gente. Finalizar a jornada de trabalho - ou iniciar um bom fim-de-semana - no lugar parece ser uma ação freqüente para muitos que encontram alí um sítio ideal para o descarrego das tensões. Ou não: o simples convívio humano que bares promovem pode ser a chave para a felicidade.
Se não se chega cedo é impossível sentar nas mesas, daí a porta e o passeio em frente virar uma estensão do espaço da casa. Por alí transitam fregueses, garçons e também um comércio de rua onde os vendedores ambulantes ficam passando entre o público oferecendo uma série de coisas que vão desde um artesanato feminino até ofertas de cartões administrativos (juro!!!). Mas nada impede que o principal aconteça: o bom papo e uma comida que só se faz alí. Não sei se chamar os petiscos do Bigode de "comida" pois foge um pouco deste formato ancorado na nutrição. O forte da casa são os tira-gostos, a maioria de feitura cuidadosa, sendo que o torresmo é quase um monumento à comida de boteco local. E é mesmo muito bom. A lotação da casa demonstra isto.
Esta peça da culinária da casa pode chegar à mesa à pururuca, acompanhando uma mandioca frita no ponto, ou seja, crocante por fora e cremosa por dentro. Mas a forma mais sedutora desta parte do porco - infeliz coadjuvante da nossa alegria gustativa - é a "ponta", parte da barriga do suíno onde predomina a carne com uma fina e necessária camada de gordura, que vem à mesa fatiada, cheirosa, suculenta e frita no ponto certo. É uma maravilha. Tal qual certa propaganda televisiva diz: "É impossível comer um só". E dá-lhe uma gelada caipirinha (ou cerveja, para os aficionados)para regar tudo: o torresmo, a mandioca frita e o papo revigorante com amigos queridos.
Se você não conhece, não sabe o que está perdendo.